quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O Teste

  Duas e vinte e sete da manhã. Anette ainda não havia tocado na comida. Levantou-se da poltrona, guardou a comida em um pote de plástico e a colocou na geladeira velha. Desligou as luzes da cozinha e da sala e checou mais uma vez se a porta da frente estava trancada. Estava. Sushi, a gata branca de sua mãe, dormia silenciosamente no segundo degrau da escada de madeira. Anette cuidou para não pisar no rabo de Sushi, então foi para o seu quarto. Geralmente ela entrava lá bêbada de sono, mas o vinho branco já havia acabado e ela esqueceu de comprar mais na mercearia local. Bebia para poder usar a embriaguez como desculpa por não ter produzido nada em seu TCC. Ana Arlette Lindenberg, ou só Anette, como gostava de ser chamada, estava cursando o último ano de arquitetura e urbanismo e decidiu utilizar a casa de campo dos pais, localizada no interior de uma cidade extremamente pequena e silenciosa, para se concentrar na execução do teste mais importante da sua faculdade. Hoje já fazia um mês que ela havia se mudado pra lá, e um total de duas páginas haviam sido totalmente feitas. Anette olhou para as folhas esparramadas na mesa na lateral da sua cama, mostrou a língua para as mesmas e se jogou na cama.
   Quatro e quarenta e oito da manhã, o despertador tocou alto demais para a dor de cabeça de Anette, que notou que seu celular havia atrasado três minutos dessa vez. Levantou, deu bom dia para Sushi, que estava deitada no tapete ao lado da cama, e foi tomar seu banho. O anticoncepcional que sua mãe havia indicado já tinha acabado há seis dias, mas como não havia notado nada de diferente em si mesma, resolveu comprar hoje mesmo, só pra ter no estoque. Isso e muito vinho. Desceu, deu ração para a gata, que agora estava deitada em cima do balcão da cozinha, ligou as luzes da varanda e saiu para sua caminhada matinal. Voltou para casa depois do meio-dia, no meio do caminho decidiu ir fazer compras a pé mesmo. A mercearia ficava muito longe pra ir andando, mas como o que ela mais tinha era tempo e, curiosamente, disposição nessa manhã, foi caminhando mesmo. Não beber na noite passada acabou fazendo bem pra ela. Chegou em casa suada e com fome, mas a primeira coisa que percebeu ao abrir o portão do pátio foi que a porta da frente estava aberta. Ela lembrava que tinha ligado as luzes da varanda e dado ração para Sushi, mas não de ter trancado a casa, embora ela sempre o fizesse. A fome e a intranquilidade que de repente bateu nela fizeram sua cabeça doer, então ela decidiu dar a volta na casa e entrar pela porta dos fundos. Tirou os tênis e entrou na ponta dos pés, fazendo o mínimo de barulho possível. Olhou com os olhos semicerrados para todos os cantos que pôde, e não viu quando Sushi passou correndo entre suas pernas. Com o susto, derrubou as sacolas das mãos, quebrando todas as garrafas de vinho. Tapou a própria boca com as mãos e se escondeu atrás da porta da lavanderia, último cômodo antes da porta de trás.
   Não sabia se tinha algo ou alguém dentro da casa, mas se tinha uma certeza nessa vida era de que Sushi era preguiçosa demais para simplesmente sair correndo daquela maneira sem algo ter acontecido. Quando teve coragem de sair da lavanderia, ouviu passos pesados vindos da escada. Tirou a mão da maçaneta e correu para trás da máquina de lavar roupas. Sentiu a nuca arrepiar e o estômago embrulhar. Estava com medo demais até para chorar. Tentou controlar a respiração para poder ouvir melhor, então percebeu que não tinha apenas uma pessoa na casa. Ouvia vozes e passos demais, ficou mais perplexa do que amedrontada, então se levantou. Quis sair e pegar um facão e gritar para saírem de sua casa e perguntar o que fizeram com a gata de sua mãe, mas não conseguiu nem estender a mão para a maçaneta. Recuou quando ouviu os passos pisando no vidro das garrafas de vinho que derrubou na entrada da porta de trás, a poucos passos de onde estava. As vozes silenciaram, os passos pararam e a maçaneta se mexeu delicadamente, como se alguém estivesse com a mão nela, mas ainda não quisesse abrir. Anette deixou o corpo reto, os olhos arregalados, e esperou que a porta abrisse. Mas isso não aconteceu. Pouco a pouco os pés começaram a ir embora. Dez minutos depois, ainda na mesma posição, ela tomou coragem e saiu da lavanderia. Sushi estava sentada no balcão da cozinha, lambendo as patas vagarosamente. Ela fez carinho na gata e a pegou no colo, trancou as portas da frente e dos fundos e subiu até seu quarto. As folhas do seu TCC estavam espalhadas pelo quarto, apenas uma permanecia na mesa. Colocou a gata na cama e leu o recado que estava escrito na folha branca. "Você precisa terminar seu TCC, Arlette... Já faz um mês!". Espantada, pegou a folha e olhou para Sushi, que não estava mais na cama. Virou-se para a porta e viu seu professor e orientador, sr. Marquez, a única pessoa que a chamava de Arlette, segurando a gata em seu colo enquanto todo o corpo docente de sua faculdade a olhava pela porta. Anette estendeu as mãos para pegar Sushi de volta, lágrimas escorriam de seus olhos, ela balbuciava para ele por favor soltá-la, a gata ronronava. Sr. Marquez estendeu os braços com Sushi em suas mãos, e quando foi entregá-la para Arlette, quebrou o pescoço da gata, fazendo-a soltar um último miado desesperado.
   Anette acordou num pulo. Olhou para todos os lados e encontrou uma Sushi assustada no tapete ao lado da cama. Já era dia alto, ela não ouviu seu celular despertar. Fez carinho na gata branca de sua mãe, sentou-se na cadeira ao lado da mesa e olhou para o seu TCC. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo todo, mas decidiu não protelar mais. Aquela merda ainda a faria perder a lucidez.

O Teste

  Duas e vinte e sete da manhã. Anette ainda não havia tocado na comida. Levantou-se da poltrona, guardou a comida em um pote de plástico e a colocou na geladeira velha. Desligou as luzes da cozinha e da sala e checou mais uma vez se a porta da frente estava trancada. Estava. Sushi, a gata branca de sua mãe, dormia silenciosamente no segundo degrau da escada de madeira. Anette cuidou para não pisar no rabo de Sushi, então foi para o seu quarto. Geralmente ela entrava lá bêbada de sono, mas o vinho branco já havia acabado e ela esqueceu de comprar mais na mercearia local. Bebia para poder usar a embriaguez como desculpa por não ter produzido nada em seu TCC. Ana Arlette Lindenberg, ou só Anette, como gostava de ser chamada, estava cursando o último ano de arquitetura e urbanismo e decidiu utilizar a casa de campo dos pais, localizada no interior de uma cidade extremamente pequena e silenciosa, para se concentrar na execução do teste mais importante da sua faculdade. Hoje já fazia um mês que ela havia se mudado pra lá, e um total de duas páginas haviam sido totalmente feitas. Anette olhou para as folhas esparramadas na mesa na lateral da sua cama, mostrou a língua para as mesmas e se jogou na cama.
   Quatro e quarenta e oito da manhã, o despertador tocou alto demais para a dor de cabeça de Anette, que notou que seu celular havia atrasado três minutos dessa vez. Levantou, deu bom dia para Sushi, que estava deitada no tapete ao lado da cama, e foi tomar seu banho. O anticoncepcional que sua mãe havia indicado já tinha acabado há seis dias, mas como não havia notado nada de diferente em si mesma, resolveu comprar hoje mesmo, só pra ter no estoque. Isso e muito vinho. Desceu, deu ração para a gata, que agora estava deitada em cima do balcão da cozinha, ligou as luzes da varanda e saiu para sua caminhada matinal. Voltou para casa depois do meio-dia, no meio do caminho decidiu ir fazer compras a pé mesmo. A mercearia ficava muito longe pra ir andando, mas como o que ela mais tinha era tempo e, curiosamente, disposição nessa manhã, foi caminhando mesmo. Não beber na noite passada acabou fazendo bem pra ela. Chegou em casa suada e com fome, mas a primeira coisa que percebeu ao abrir o portão do pátio foi que a porta da frente estava aberta. Ela lembrava que tinha ligado as luzes da varanda e dado ração para Sushi, mas não de ter trancado a casa, embora ela sempre o fizesse. A fome e a intranquilidade que de repente bateu nela fizeram sua cabeça doer, então ela decidiu dar a volta na casa e entrar pela porta dos fundos. Tirou os tênis e entrou na ponta dos pés, fazendo o mínimo de barulho possível. Olhou com os olhos semicerrados para todos os cantos que pôde, e não viu quando Sushi passou correndo entre suas pernas. Com o susto, derrubou as sacolas das mãos, quebrando todas as garrafas de vinho. Tapou a própria boca com as mãos e se escondeu atrás da porta da lavanderia, último cômodo antes da porta de trás.
   Não sabia se tinha algo ou alguém dentro da casa, mas se tinha uma certeza nessa vida era de que Sushi era preguiçosa demais para simplesmente sair correndo daquela maneira sem algo ter acontecido. Quando teve coragem de sair da lavanderia, ouviu passos pesados vindos da escada. Tirou a mão da maçaneta e correu para trás da máquina de lavar roupas. Sentiu a nuca arrepiar e o estômago embrulhar. Estava com medo demais até para chorar. Tentou controlar a respiração para poder ouvir melhor, então percebeu que não tinha apenas uma pessoa na casa. Ouvia vozes e passos demais, ficou mais perplexa do que amedrontada, então se levantou. Quis sair e pegar um facão e gritar para saírem de sua casa e perguntar o que fizeram com a gata de sua mãe, mas não conseguiu nem estender a mão para a maçaneta. Recuou quando ouviu os passos pisando no vidro das garrafas de vinho que derrubou na entrada da porta de trás, a poucos passos de onde estava. As vozes silenciaram, os passos pararam e a maçaneta se mexeu delicadamente, como se alguém estivesse com a mão nela, mas ainda não quisesse abrir. Anette deixou o corpo reto, os olhos arregalados, e esperou que a porta abrisse. Mas isso não aconteceu. Pouco a pouco os pés começaram a ir embora. Dez minutos depois, ainda na mesma posição, ela tomou coragem e saiu da lavanderia. Sushi estava sentada no balcão da cozinha, lambendo as patas vagarosamente. Ela fez carinho na gata e a pegou no colo, trancou as portas da frente e dos fundos e subiu até seu quarto. As folhas do seu TCC estavam espalhadas pelo quarto, apenas uma permanecia na mesa. Colocou a gata na cama e leu o recado que estava escrito na folha branca. "Você precisa terminar seu TCC, Arlette... Já faz um mês!". Espantada, pegou a folha e olhou para Sushi, que não estava mais na cama. Virou-se para a porta e viu seu professor e orientador, sr. Marquez, a única pessoa que a chamava de Arlette, segurando a gata em seu colo enquanto todo o corpo docente de sua faculdade a olhava pela porta. Anette estendeu as mãos para pegar Sushi de volta, lágrimas escorriam de seus olhos, ela balbuciava para ele por favor soltá-la, a gata ronronava. Sr. Marquez estendeu os braços com Sushi em suas mãos, e quando foi entregá-la para Arlette, quebrou o pescoço da gata, fazendo-a soltar um último miado desesperado.
   Anette acordou num pulo. Olhou para todos os lados e encontrou uma Sushi assustada no tapete ao lado da cama. Já era dia alto, ela não ouviu seu celular despertar. Fez carinho na gata branca de sua mãe, sentou-se na cadeira ao lado da mesa e olhou para o seu TCC. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo todo, mas decidiu não protelar mais. Aquela merda ainda a faria perder a lucidez.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

1+1+1=2

   Desceu as escadas com pressa. Chave na mão, casaco fechado e lágrimas nos olhos. Passou pelas pessoas sem dar atenção, correu até seu carro e não quis saber de respeitar o limite de velocidade do estacionamento do condomínio. Foda-se se iriam lhe dar multa, só queria sair de lá. Tomou a esquerda e ao passar por um buraco pôs-se a chorar. Soluçava, gemia, mas não parava de acelerar. Ignorava as cores dos sinaleiros e as buzinas, apenas aumentava a velocidade e enxugava as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Era julho, o frio estava no seu ápice, mas a pressa e o choro ininterrupto faziam sua testa suar.
   Dentro de poucos minutos o choro passou e o terror tomara conta de seu corpo. Suas mãos tremiam, as pernas estavam bambas, a cabeça latejava demais. Zigue-zagueava pelas ruas com um destino em mente, nas não queria chegar lá. A chuva então começou a cair, forte, pesada, mas seu limpador de parabrisa não funcionava há meses. Enxergava muito pouco, quase nada, o que fez com que perdesse a entrada à esquerda. Pisou ainda mais forte no acelerador, fazendo o carro roncar alto demais pela ausência de troca da marcha. Não conhecia aquele caminho, mas desde que havia saído de sua cama não sabia mais qual caminho tomar.
   Já haviam se passado duas horas desde que havia saído de sua casa. Estava de frente a um viaduto. Farois desligados, motor desativado, apenas o som da tempestade no vidro traseiro do carro e a voz pouco emblemática de Gwineth Paltrow embalavam seu devaneio mental. Olhava pro nada pensando em tudo, as lágrimas já haviam secado, mas a dor da sua certeza  demoraria uma vida inteira pra passar. Quando acordou, algumas horas mais tarde, a chuva já havia cessado, bem como sua vontade de fugir. Ligou o carro, aumentou o volume do rádio até sua capacidade máxima e voltou para casa cantando em histeria. Sua direção era calma, mas seu estado emocional nem um pouco. Entrou no portão nos primeiros raios do sol, guardou seu veículo, subiu as escadas, abriu a porta e decidiu de uma vez por todas encarar sua realidade.
   Em sua cama haviam ainda duas pessoas. Uma ele amava, a outra não mais. Estavam em sono profundo, dormindo a uma certa distância, então se encaixou no meio para refletir sobre sua decisão. Começou a sussurrar sua mais nova verdade, então a falar, quase gritar, o que fez despertar os dois lados da cama. Recebeu olhares de sono e confusão, então se pôs de pé e explicou o que havia feito na noite passada. O cansaço tomava conta, seu corpo estava implorando por descanso, mas precisava dizer aquilo ali e naquele momento. Quando terminou de falar, saiu do quarto e deixou a vida decidir o que aconteceria dali pra frente. Sentou-se no sofá da sala, tirou o casaco e se pôs a esperar com as mãos no rosto. Pouco tempo depois um vulto passou pela sala e saiu pela porta sem se despedir. Ergueu a cabeça, mas não quis olhar pela janela pra ver quem havia saído. Tirou os tênis e a calça, respirou fundo e voltou para o quarto. Na sua cama seu amor ainda estava com lágrimas nos olhos, mas de braços abertos, cicatrizes expostas, com disposição pra perdoar e seguir em frente, como sempre fizeram. Entendeu que poderia ser feliz assim, sorriu discretamente, abriu seus braços e sentou-se na beirada da cama. Olhou pra trás e com muita confiança soltou seu mais exausto "Eu te amo". Pela primeira vez naquele colchão, mentiu.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Destino Plenitude

   Sonhava o inalcançável e desafiava sua própria lucidez. Com marcas de derrotas pelo corpo, deslizava pela vida como um majestoso lince. Erguia sua cabeça, enchia o peito e gritava ofensas nas mais diversas línguas, sem ao menos saber se estava ofendendo alguém de fato. Riscava destinos dos mapas como uma criança risca a lousa com giz e com o mesmo sorriso inocente colecionava corações. Nenhum deles maiores do que o seu. Amava sem limites, se apaixonava por histórias, experiências, tão intensamente se tornava a própria felicidade nas rotinas alheias e num piscar de olhos, o tempo de um último beijo, fazia da sua presença nada mais do que uma doce lembrança.
   Era atraente mas não sabia disso. Inteligente, mas não se expunha. Envolvente ao ponto de se deixar envolver pelo envolvimento próprio. Escrevia poemas com rimas que não rimavam, cantava músicas sem ritmo nem tom e pintava telas que não tinham significado, apenas expressavam o colorido de sua alma. Com o mais sincero sorriso era notável, diferente, e tão comum quanto qualquer um. Em seus devaneios em topos de montanhas, cachoeiras secretas ou hoteis desprovidos de luxo lembrava de quem um dia havia sido, olhava para o ceu e adormecia sem dificuldades.
   Um dia sua alma juvenil irá cansar, seu riso demonstrará cansaço e seus amores terão outros amores. Nesse dia, irá largar seus pertences, rasgar todos os mapas e não mais rimar sem rimas, cantar sem melodia e pintará sua alma cinza. Será o dia em que vai se sentir tão só, baixará sua dura guarda e ouvirá seus doídos joelhos. Olhará pro ceu com um propósito diferente e dele vai querer uma resposta. Tendo-a ou não, vai sorrir, escuro ceu, e sabendo que alcançou seu mais inesperado sonho, vai brilhar entre as estrelas como um dia brilharam seus olhos.

domingo, 7 de maio de 2017

Avalanche

   Fazia tempo que não se sentia assim. Disse à todos que iria fumar um cigarro, mas saiu pela porta e desde então estava caminhando a esmo. Seus passos eram lentos, curtos, pesados e arrastados. Seus óculos estavam sujos, mas não importava. O frio daquela madrugada de sábado batia contra a jaqueta grossa, mas não era o frio que arrepiava sua pele tatuada. Saiu da festa pois as músicas haviam perdido o sentido, as bebidas perderam o gosto e a companhia perdeu o tesão. No meio de tantas luzes e batidas, se viu diante de um cenário sem sentido, em que tudo que via era tudo que não queria ver. Mais do que depressa, deu a primeira desculpa que lhe veio à cabeça e saiu pela porta.
   Então andou. Sem pressa, sem rumo, simplesmente andou. Viu prédios por ângulos diferentes, carros atingindo velocidades que, durante o dia, não atingiriam e principalmente, viu pessoas. Pessoas das mais diversas formas e tamanhos, culturas e sonoridades. Passou por todas como se fossem mera paisagem. Não sabia para onde estava indo, mas sabia que não queria que lhe perguntassem.
   Não só andou, também pensou. Sobre tudo, sobre todos. Não havia bebido, estava pensando demais. E a cada pensamento seus passos diminuíam. Tirava conclusões, sussurrava nomes, olhava para trás, mas em nenhum momento fez menção de voltar. Perto do rio, se sentou em um banco e chorou. O sol já começava a pincelar o ceu, ainda estava frio e as lágrimas secavam rápido em seu rosto. Gritou algumas vezes de frustração, pegou o celular mas o guardou, não havia bebido nada naquela noite. A vida já estava voltando a acontecer na cidade. A sua, prestes a desmoronar.
   Chegou em casa com mais fome do que sono. A viagem de volta havia sido mais longa, apesar de mais rápida, pois só pensou nela. Ainda estava na cama, os pés descobertos, então fez silêncio. Comeu o sanduíche de peito de peru e salada que ela havia deixado pronto na noite passada junto de um copo de suco de pêssego, tirou a jaqueta e se olhou no espelho. O cabelo comprido lhe incomodava, mas ela gostava. Tirou os óculos e o sutiã por baixo da blusa e, quando ela abriu por completo a porta do quarto ao acordar com um olhar de dúvida no rosto, tudo que pôde dizer foi: "Me perdoa".

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Fonte seca, vazia

   Li a carta mais uma vez pra poder me situar. "Estou fazendo isso pois ainda vejo potencial em você. Me perdoe." Eu não quero perdoar. Tanto tempo juntos e de repente tudo acaba por causa do meu maldito talento desperdiçado? Talento esse que nunca fora reconhecido por alguém que não fosse do meio de convívio, por alguém que não enchesse meu ego por medo de um eventual suicídio, por alguém que sempre disse que me amava querendo algo em troca. E o que queria no final das contas? Eu dei amor, eu dei meu tempo, eu dei tudo de mim e por Deus, até feliz eu fui! Eu me entreguei, mas não fui o suficiente.
   Nas tantas vezes em que me expressei de maneira poética a ponto de mostrar o meu carinho, tua resposta era uma lágrima. Uma única lágrima que brotava tão cruel no olho esquerdo e morria no chão. Eu, iludido, achava que tinha atingido seu coração, quando na verdade, ilusório, massacrava seus ideais de estar com alguém importante o suficiente para transmitir tais palavras para mais de uma pessoa. "Não faça só para mim, faça para o mundo!", você insistia. "Você é meu mundo...", eu dizia. Dormíamos em quartos separados.
   Agora eu tenho duas folhas cheias de justificativas e um final nada feliz. Seguro-as com escárnio, como se tivessem sido escritas pelo próprio diabo. Quem me dirá que não foram? Tantas ideias, tantas imagens, teu rosto se forma na minha mente e uma única frase se repete na minha cabeça: "Minha inspiração se foi". Procuro nas minhas obras algo que não seja relacionado a você, mas tudo, absolutamente tudo é sobre você. Eu sorrio com vergonha de mim mesmo, "Talento é o caralho!" Tanto tempo, tantas obras, tudo a mesma coisa com maneiras diferentes de expressar. Agora eu entendo aquela lágrima. Agora eu choro aquela lágrima. "Pro inferno com a tua sabedoria, meu amor... Te vejo lá"

      
                              - /// -

   Abro a porta e todas as folhas, um dia cheias de arte, estão pintadas de vermelho. A casa cheira à poesia crua, e isso me assusta. Corro para o quarto e me deparo com o corpo no chão. 'Finalmente você teve o seu final poético, não é mesmo?' Coloco "Wouldn't It Be Nice" pra tocar enquanto recolho todas as obras que contém algo sobre mim... É o mínimo que posso fazer.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Em obras

   - Esse ônibus vai pro Norte?
   - 'Vai sim senhor.'
   - Obrigado...
   (...)
   - Você sabe que horas são, por gentileza?
   - 'Três e doze.'
   - Ah tá, obrigado de novo (coloca o fone).
   - 'Hm... Interessante, você me pergunta as horas, mas será que tá interessado no real valor do tempo?'
   - (tira o fone)... Como é que é, não entendi?
   -  '... digo, as pessoas hoje em dia estão sempre tão apressadas, eu até entendo, eu estou sempre tão apressado também, mas ninguém tira um segundo sequer pra dizer um olá, pra pedir licença da maneira correta, pra dar lugar pra um idoso, meu bom Deus!'
   -... é, meu senhor, tá complicado mesmo.
   -  'Eu já te peço perdão pelo desabafo, meu jovem, sei que tu só queres ouvir tua música e chegar no teu destino, mas tô com isso preso na minha garganta tem um tempo e, honestamente, acho que tu vais ter que ouvir um pouquinho.'
   - (dando um sorriso MUITO envergonhado) Tem problema não, senhor, pode falar.
   -  'Sabe, recentemente eu perdi minha esposa... (olha pela janela, espera uma frase de empatia que não vem)E desde que ela se foi, eu ando vagando por esses ônibus, conhecendo lugares, pessoas, evitando de pensar, deixando de lembrar. Tentando ao máximo não sentir saudades... '
   -...entendi...
   - 'Que mal lhe pergunte, meu filho, quantos anos você tem?'
   - Eu?
   - 'Uhum.'
   - Vinte e um.
   - 'TÃO JOOOOVEM! (dá uma risada, aperta o ombro do rapaz)... Eu posso te dar um conselho? Só um?'
   - Pode, ué!
   - 'Não sinta saudade.'
   - Não entendi...
   - 'Simples assim: Não sinta saudade! Se você ama, diga. Se você quer, corra atrás. Se ainda estão vivos, abrace, beije, sinta o quanto puder. Só não deixe pra amanhã. E expresse, meu filho. Não tenha medo de expressar. Isso nunca te fará menos alguma coisa, ponha isso na sua cabeça. Tome esse velho aqui como exemplo.'
   - (extremamente interessado, algo raro) O senhor sempre demonstrou?
   - 'Muito pelo contrário! (olha pela janela outra vez, respira fundo, pesadamente) Eu era bruto, violento até. Se hoje tento evitar sentir saudades da minha esposa é porque eu não lembro de ter dito que a amava. E MEU DEUS, como eu a amava. Se apenas eu pudesse dizer isso pra ela hoje... Se apenas eu tivesse dito isso quando tive tempo...'
   - (o ônibus se aproxima do seu ponto, mas ele não parece se importar)
   - 'Eu tenho três filhos e uma filha, mas nenhum deles é próximo de mim. Eu não os culpo (respira fundo, olha para as próprias mãos), fui um péssimo pai. Sinto saudade deles, só queria pedir perdão... Por isso eu rodo nesses ônibus, meu guri! Eu rodo e rodo e rodo pra não lembrar. Eu não quero beber e, felizmente ou infelizmente, não sei, minha memória é muito boa pra minha idade. Por isso eu reforço: NÃO SINTA SAUDADE!... É péssimo (dá um sorriso amarelo).'
   -  Sei nem o que dizer, meu senhor, eu nunca passei por esse tipo de situação, tá ligado? (olha pra fora, vê seu ponto se aproximando, puxa a corda). Mas eu vou levar seu conselho pra minha vida, tiozinho, na moral!
   - '(sorri em concordância, se despede do jovem, segue seu passeio no ônibus)'

   - (recebe mensagem da mãe dizendo "Filho, não consegui colocar crédito, as loja tava tudo fechada. Bj". Começa a gravar um áudio) Pô, coroa, vacilo, hein?! Tem problema, não, tá tranquilo, outra hora eu dou um jeito no bagulho aqui, fica tranquila, sem neurose, sem caô. (ainda com o dedo pressionado no gravar, engole um seco) Mãe... Eu... Eu te amo... Tá ligada não?... Bênção coroa.

   (ele nunca havia dito que a amava antes).